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terça-feira, 1 de março de 2011

O Segundo Sexo Vol I - Cap 1 ( Parte 3)

O Segundo Sexo
Capítulo 1 - Os dados da Biologia ( Parte 3)
Páginas 41 - 52


Beauvoir se dedica em explorar distintas espécies animais para mostrar que a divisão sexual existente em cada uma delas não pode ser compreendida de modo unívoco, isto é, macho e fêmea não necessariamente ocupam as mesmas funções sexuais e responsabilidade com a prole em todos os animais indistintamente. Para tanto, Beauvoir cita como exemplo os peixes, entre os quais há aqueles que não fecundam através do coito, mas expelem ambos o sêmen (macho) e os óvulos (fêmea), donde a fecundação ocorre fora de ambos, não tendo nenhum dos dois a “posse” dos fecundados. A fêmea, em algumas espécies, nem sempre desempenha a função de protetora do ninho, havendo casos em que o macho é o responsável por tal momento.

No entanto, segundo aponta Beauvoir, nos mamíferos “a vida assume as formas mais complexas e individualiza-se mais concretamente”. Os dois momentos vitais, o manter e o criar, que em outras espécies não possui uma cisão definitiva, assumem-na aqui na separação dos sexos, na qual a fêmea possui um laço mais estreito com os filhos do que o macho. “Todo o organismo da fêmea adapta-se à servidão da maternidade”, até mesmo o momento do coito não é por ela decidido: é refém de ciclos em que ela se torna fértil – o cio – e que emite sinais aos machos, contudo não cabe à fêmea impor o coito, mas ao macho. Isso também é exposto pelo modo como se dá a fecundação: o macho se põe sobre a fêmea, acima dela, ele que insere o seu órgão dentro do dela, é ela quem recebe passiva, ela sofre tal ação.

Para Beauvoir, a diferença fundamental nos mamíferos entre o macho e a fêmea está no fato de que, enquanto no macho o espermatozóide sai dele para ir a outro corpo, isto é, transcende-se em outro corpo se tornando estranho ao macho superando sua individualidade, na fêmea, por outro lado, o óvulo, fecundado pelo espermatozóide, instala-se no útero, ou seja, no interior na própria fêmea. Ela é fecundada por um ser que lhe é estranho e que se alimenta dela mesma em seu interior. Ela é si mesma e outrem, mesmo depois do parto, quando a prole se alimenta de seu leite. Daí se questiona: a partir de quando este ser se torna autônomo? Quando fecundado, quando nasce, ou na desmama? Todavia, é interessante notar em que sentido ela afirma sua individualidade, pois embora seja tão competente quanto o macho nas características de sua espécie, ela não se põe ao macho, não reivindica sua individualidade.

O macho assume aqui o papel positivo, que supera a si mesmo, ao passo que a fêmea parece se manter em si mesma: Beauvoir cita Hegel, o qual lê no macho o elemento subjetivo. Seu organismo não o consome, ao contrário do da fêmea, e o macho não se vê impelido a manifestar interesses pelos filhos.

No entanto, embora os dois sexos representem “dois aspectos diversas da vida da espécie”, “sua oposição não é (...) a de uma atividade e de uma passividade”. Ora, o espermatozóide só tem vitalidade quanto em união com o óvulo, donde este só pode também se manter ao se superar, do contrário degeneraria, de modo que vemos nele também uma vitalidade quando em conjunto com o espermatozóide. Manter e criar, os dois momentos vitais, caracterizam-se por, respectivamente, “negar a dispersão dos instantes”, isto é, “afirmar a continuidade durante o seu aparecimento” (o manter), e “fazer rebentar no seio da unidade temporal um presente irredutível” (o criar). A fêmea não é restringida a si mesma, ela participa da continuidade da vida, a superação depende tanto do macho quanto dela, “é-lhe permitido afirmar-se em sua autonomia”, mesmo sua individualidade sendo combatida pelo interesse da espécie, sendo possuída por força estranhas a ela, sentindo a servidão.

Beauvoir expõe dados biológicos relacionados aos hormônios na fêmea e no macho, donde percebe que, inicialmente, não há diferenças substanciais entre ambos, acontecendo até mesmo casos em que a fêmea demonstra certos caracteres masculinos, não significando, todavia, que isto represente uma vitória do indivíduo sobre a espécie. Há que se atentar para o fato de que os órgãos genitais têm muita influência na vitalidade do indivíduo, a ponto de que aquele que foi castrado ou que teve uma má formação, tende a ser não apenas estéril, mas, degenera mais facilmente. Contudo, “muitos fenômenos genitais não interessam a vida individual do sujeito e até chegam a pô-la em perigo. As glândulas mamárias que se desenvolvem no momento da puberdade nenhum papel desempenham na economia individual da mulher; pode-se proceder à sua ablação em qualquer momento de sua vida”.

Simone de Beauvoir empreende, então, a uma análise do modo como o aparelho reprodutor feminino opera mensalmente, tendo como intenção expor que tal o processo abala o organismo da mulher por inteiro, inclusive o sistema nervoso central, o vegetativo e todas as vísceras. Por conta disso, a maioria das mulheres apresenta perturbações nesse período: tensão arterial, aceleração do pulmão, aumento de temperatura, dores no abdome etc. Ao ter o sistema nervoso atingido, sofre por conseguinte uma grande instabilidade de humor. É aqui que ela sente seu corpo sob uma perspectiva penosa, alienada. “A mulher, como o homem, é seu corpo mas seu corpo não é ela, é outra coisa”.

Sob um ponto de vista fisiológico, a gravidez não traz à mulher nenhum benefício individual, ao passo que exige sacrifícios. Beauvoir mostra que, embora haja a visão psicológica da maternidade, a fêmea humana é, entre as demais fêmeas, aquela que tem a mais penosa das gestações, onde seu corpo literalmente sofre com a gravidez. Em certos casos, dependendo da saúde da gestante, sua própria vida e a da criança correm riscos; por vezes o corpo não suporta, a espécie mata o(s) indivíduo(s). A batalha entre espécie e indivíduo continua após o parto.

A mulher parece se coincidir mais consigo mesma ao se libertar do mênstruo, quando, na menopausa, sua atividade ovariana desaparece. É interessante perceber que, ainda aqui, ela passa a sofrer com as consequências dessa cessação. Não obstante, ao menos se liberta da servidão da fêmea.

Ao nos depararmos com tal imagem da fêmea humana, percebemo-la como desprivilegiada com relação às demais fêmeas e com a existência do macho. É, entre todos, a mais alienada, ela é quem mais sofre com seu próprio corpo. Tais descrições biológicas têm como base mostrar o modo como se constitui o corpo da mulher, visto ser ele o instrumento pelo qual é possível apreender o mundo. Todavia, embora seja de grande importância, ele não explica, segundo Beauvoir, o motivo pelo qual a mulher é considerada o Outro, não é capaz de traçar um destino imutável à mulher. Daí a necessidade de se avançar na pesquisa, em vez de buscar respostas somente nos aspectos fisiológicos.